Em um tempo em que as palavras circulam com a velocidade de um clique e se moldam às necessidades do costume, é preciso parar e pensar: o que, afinal, estamos dizendo quando dizemos o que dizemos?
A palavra “seio”, por exemplo, é geralmente usada no plural para se referir aos peitos femininos, “os seios”. A medicina, a literatura e até a publicidade consagraram esse uso. Mas será que esse é realmente o sentido original da palavra?
A origem da palavra: um lugar de abrigo, não de saliência
A palavra “seio” vem do latim sinus, que significa cavidade, reentrância, baía, dobra. No fundo, trata-se de um espaço interior, de acolhimento. Não há, em sua raiz, qualquer ideia de volume ou protuberância.
E é justamente por isso que surge uma reflexão incômoda: se “seio” significa “cavidade”, como pode ser usada para nomear aquilo que salta para fora do corpo, os peitos femininos?
Mais coerente com a etimologia seria dizer que o verdadeiro “seio” está entre os peitos, na valeta natural que os separa e forma uma cavidade. Esse sim seria, literalmente, o seio.
A criança, quando mama, não repousa sobre os seios, mas entre eles, aninhada em um espaço de proteção. Por isso mesmo, expressões como “no seio da mãe” ou “no seio da família” fazem sentido profundo, referem-se a um interior, a um abrigo, a um núcleo de afeto.
Quando o uso trai a origem
Mesmo com esse fundamento etimológico, a palavra “seios” ganhou ao longo dos séculos um novo destino. Passou a significar aquilo que se vê, que se toca, que se forma com o corpo feminino em desenvolvimento. A norma culta da língua portuguesa aceita e consagra esse uso.
Mas, como acontece com tantas palavras, o uso popular pode trair a origem, e esse é um fenômeno natural da linguagem. A língua é viva. Ela se dobra à cultura, ao tempo, ao desejo de comunicação. Nem sempre é fiel à raiz.
A pergunta que se impõe é: essa traição da origem nos distancia do verdadeiro sentido das coisas?
As Escrituras e o risco da tradução
Essa reflexão nos leva inevitavelmente à Bíblia, um livro escrito há milênios em línguas como hebraico, aramaico e grego, e que foi traduzido inúmeras vezes até chegar à forma que conhecemos hoje. E aqui está o ponto mais delicado e profundo:
Será que as palavras que lemos hoje nas Escrituras têm o mesmo significado que tinham em suas versões originais?
Tal como “seio” deixou de ser “cavidade” para virar “protuberância”, palavras bíblicas também podem ter passado por mudanças de sentido, conforme foram interpretadas por diferentes culturas, igrejas, teologias, ideologias e tradutores.
Palavras como:
- Inferno, que no hebraico original pode significar apenas "sepultura" (Sheol),
- Espírito, que vem de ruach (vento, sopro),
- Amor, que tinha várias formas no grego (ágape, eros, philia, storgē),
- ou mesmo pecado, que no original podia significar simplesmente “errar o alvo”.
Essas palavras, assim como “seio”, foram ressignificadas, adaptadas ao contexto, ao tempo e ao entendimento humano. E, por isso mesmo, as interpretações modernas da Bíblia nem sempre refletem com exatidão a intenção dos textos sagrados em sua origem.
O poder e o risco das palavras
Se o uso pode trair a origem, a leitura pode trair o espírito.
Palavras não são apenas sons ou letras, são estruturas de pensamento, são janelas para o mundo. E quando se mudam, elas mudam junto a forma como vemos as coisas, ou como cremos nelas.
Por isso, é importante olhar com mais profundidade para a linguagem. Questionar. Reabrir os textos. Buscar os significados originais. Voltar ao ponto de partida como quem retorna ao seio da palavra.
Talvez, nesse processo, a gente descubra que a verdade não está apenas no que foi dito. Mas no que foi esquecido, deslocado, suavizado ou distorcido com o tempo.
Afinal, não é o uso que determina o verdadeiro sentido, é a origem.
Materia fruto de pesquisa.
Henrique Melo - Rede Sertão PB
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